Na criação de Adão e Eva é dito que Eva foi criada a partir da costela de Adão.
«Então, o Senhor Deus fez cair um sono ritual (tardemah) sobre o homem, e de um dos seus lados (tsela) construiu (banah) uma mulher (´ishshah) , e conduziu-a ao homem(há´adam)» (Gn 2, 21-22)[i]
Lendo o relato é fácil compreender que apesar de poder existir alguma lógica mais complexa, que esta tem uma realidade muito própria, como uma peça de teatro como várias partes:
1 – deus cria Adão
2 – deus faz Adão adormecer
3 – de um dos seus lados cria a mulher
De acordo com o Padre Carreira das Neves:
“O relato não quer determinar que a mulher tenha sido criada depois do homem, em sentido cronológico, nem que tenha sido fruto duma parte biológica do homem. Na sua simbólica apenas quer significar que o humano é homem e mulher, nem só masculino, nem só feminino, mas masculino e feminino, e que a criação só está completa com este homem-mulher.”[ii]
Não sei até que ponto esta leitura imaginada não é levar longe demais as coisas. Senão vejamos. Efectivamente toda a leitura que o Padre Carreira das Neves faz baseia-se essencialmente no que não está escrito. Não admira que a Bíblia tenha infinitas leituras. Tudo o que o texto afirma o padre Carreira das Neves diz que não é isso que quer dizer e depois, baseado naquilo que não está escrito, diz-nos o que o texto realmente significa. Obviamente que lendo este excerto de texto eu só poderia pensar na sua simbólica, em como a criação não está completa sem homem e mulher.
E depois desta leitura a criação ficou completa. Ou talvez não. É que parece que estas leituras 100% não literalistas dão hazo a afirmações que são contrasensos autênticos. As leituras literalistas também e, provavelmente, isto deve-se ao facto da fonte (Bíblia) ser bastante má. Chamo a atenção para o facto de que nesta leitura conclui-se que a criação só está completa com homem e mulher (mesmo que cronologicamente a mulher tenha derivado do homem) porque umas páginas antes, o mesmo padre Carreira das Neves tinha escrito:
“Deus precisa dos homens para continuar a sua criação, à semelhança do que afirma Paulo quando diz que continuamos a obra da redenção. Será que o homem moderno, cheio de si, de ciência e consumismo, entende isto?”[iii]
Presumo que quando seja para fazer perguntas baseadas em filosofia barata seja útil dizer que a criação não está acabada, mas quando se procura analisar um texto com base no que não se lá encontra escrito, seja útil a criação estar acabada.
Conhecendo eu bem a teologia como conheço até presumo que alguém se lembrará de criar uma qualquer diferença de palavras para validar a teologia e depois talvez possamos ler algo como: “A criação está completa mas não está acabada, por isso Deus precisa do homem-mulher para a completar… perdão, acabar!”
O que é realmente importante nesta versão não literalista de exegese bíblica é que a Igreja encontrou outra forma de manter os fiéis na mais profunda estupidez e dependência moral ou intelectual. Durante séculos a Igreja fez leituras literalistas da Bíblia e manipulou o que cria da Bíblia. Fazia-o com facilidade, uma vez que a maioria das pessoas nem sabia ler. Agora que a maioria dos fiéis sabem ler e questionam abertamente os seus textos sagrados vem uma nova forma de ler a Bíblia que nada tem a ver com o texto e que só os teólogos é que parece serem capazes de fazer. Curiosamente teólogos de diferentes famílias cristâs, parecem fazer leituras diferentes do mesmo texto.
NOTAS FINAIS
[i] Citado por Carreira das Neves, Evolução a duas vozes, pág. 24.
[ii] Evolução a duas vozes, pag. 24.
[iii] Idem, idem, pág. 19.
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