sexta-feira, 30 de outubro de 2009

Bíblia: literalismo vs simbologia ou Carreira das neves vs Saramago

O Advogado tem de admitir que achou a discussão entre Saramago e o Padre Carreira das Neves, bastante pobre. Não gostou dos argumentos usados nem da forma como foram desenvolvidos. Ficaram imensas coisas no ar que o Advogado gostaria de discutir. Algumas ainda pululavam alegremente entre neurónios quando se decidiu a escrever este texto. Vamos lá ver, então, que tipo de obra de arte os neurónios do Advogado criaram nestes últimos 20 minutos.

De acordo com o Padre Carreira das Neves a Bíblia é um livro com infinitas leituras. Se a bíblia tem infinitas leituras ou pode ser lida de infinitas maneiras, então, a leitura literalista da mesma está correcta. Podem existir leituras erradas da Bíblia quando esta pode ser lida de infinitas maneiras?

Um facto ficou bem patente na discussão. Cada Igreja lê a Bíblia como bem entender. Os cristãos católicos, os ortodoxos ou os protestantes têm diferentes leituras dos mesmos textos bíblicos. É certo que existem diferenças na constituição da Bíblia nestes 3 grupos cristãos, motivadas por diferenças ideológicas e políticas. As diferenças entre os textos bíblicos das diferentes confissões cristâs; as diferentes leituras de textos bíblicos comuns assim como as diferentes leituras feitas ao longo das épocas deveriam lançar o alarme para qualquer pessoa com bom senso que a Bíblia não possui nenhuma verdade universal e credível. A extrema subjectividade da leitura bíblica invalida qualquer mensagem que se pretenda retirar dali.

O programa acabou por ser inibido por um discurso pobre que se focava na atenção dada à leitura literalista da Bíblia. Carreira das Neves não teve interesse em aprofundar a questão e o Saramago não teve estaleca para saber escolher e discutir exemplos. Saramago teve o mérito de levantar uma questão relevante mas fracassou na defesa dessa questão: até que ponto podemos nós afastar-nos do que está escrito na Bíblia?

Sem dúvida que as leituras altamente simbólicas da Bíblia fazem-nos tirar ilações que nada tem a ver com o texto. E como essas leituras podem ser altamente manipuladas pelas crenças de quem lê o texto em si acaba por perder significado. Os exemplos escolhidos foram pobres e dirigiram-se mais a seitas fundamentalistas que a uma “teologia mais douta” do Padre Carreira das Neves.

No entanto há outra questão relevante: como definimos o que pode ser lido literalmente ou não? Que direito temos nós de alterar a forma como as ideias são percebidas e como foram expressas no texto? Permitam-me dar alguns exemplos bíblicos para responder a estas questões.

Quando São Paulo, escreve na 1ª carta aos coríntios:

“Como acontece em todas as assembleias de santos, as mulheres estejam caladas nas assembleias, pois não lhes é permitido tomar a palavra e, como diz também a Lei, devem ser submissas. Se quiserem saber alguma coisa, perguntem em casa aos maridos, porque não é conveniente para uma mulher falar na assembleia.”


Deverá ser lido em termos simbólicos ou literalistas? Numa sociedade em que as mulheres têm cada vez mais um papel activo talvez não seja próprio fazer uma leitura literalista deste excerto do Livro Sagrado. Como poderão os protestantes (calvinistas e luteranos) ler este excerto bíblico quando, no momento em que escrevo este artigo, o seu representante máximo é uma mulher? E que tipo de leitura simbólica poderíamos inventar – é o termo correcto – para excertos deste tipo de literatura sagrada?

A segunda questão é ainda mais venenosa para o cristianismo. Que direito temos nós de alterar a forma como as ideias são percebidas e como foram expressas no texto? Permitam-me adicionar outra: que valor terá o texto cuja leitura foi manipulada desta forma? E não falamos das alterações do texto em si (para mais informação aconselho a obra de Bart Ehrman, considerado um dos maiores especialistas mundiais em estudos bíblicos, intitulada Os Monges que Traíram Jesus) mas da forma como se lê.

A crença na vinda do “Reino de Deus” por Jesus e os apóstolos é um caso de estudo interessante. É hoje reconhecido por imensos estudiosos da Bíblia que Cristo acreditava mesmo na vinda do “Reino de Deus”. Não era uma parábola, uma sátira ou uma hipérbole mas sim realidade pura. Como foi expresso pelos autores da obra O Livro Negro do Cristianismo:

“O termo “Reino de Deus” não era uma metáfora: Jesus e outros pregadores pensavam deveras que Deus, ou um enviado dele, desceria à Terra e criaria um novo ordenamento político-social, invertendo o que nós hoje chamamos “relações de classe” (“Muitos dos primeiros serão os últimos, e muitos dos últimos serão os primeiros”.)”[i]


Juan Arias, que já acompanhou os papas Paulo VI e João Paulo II, com estudos em teologia, línguas semíticas e Filologia Comparada na Universidade de Roma foi o investigador responsável pela descoberta do único códice existente no dialecto de Jesus de Nazaré. Na sua obra A Bíblia e os Seus Segredos, escreveu:

“São Paulo transformou em Teologia a doutrina do reino do céu”[ii]


Este é um aspecto extremamente importante, mais não seja porque envolve a credibilidade de uma personagem bíblica considerada parte da santíssima trindade: Jesus Cristo. Qual o seu valor divino se os crentes se apercebessem do vazio das suas crenças? Qual o seu poder sagrado quando as suas previsões estão erradas? Como afectaria este conhecimento a sua divindade? Que direito tem a Igreja de manipular este tipo de leitura? Qual o valor da sua mensagem e das suas crenças quando se baseiam neste tipo de manipulação? Seria interessante ver o Padre Carreira das Neves responder a este tipo de questões.

Se ler a bíblia de forma literal é um acto de fundamentalismo religioso, ler a Bíblia de forma simbólica enquanto livro sagrado é um acto de hipocrisia e desonestidade intelectual.

NOTAS FINAIS


[i] Fo, J. Tomat S. Malucelli L. O Livro negro do cristianismo. Pág. 21

[ii] Aria J. A Bìblia e os Seus Segredos. Pág. 69.

2 comentários:

  1. 2009-11-07 19:53:59
    A velha desculpa da embro...ops,hermenêutica para disfarçar os absurdos berrantes desse livrinho.Só não vê quem não quiser.Há mais diversão em http://www.bibliadocetico.net/

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  2. 2009-11-08 21:07:04
    Site muito interessante. Vou colocá-lo já nos links.
    Obrigado hoelish

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